Por Paulo Neto
Advogado. OAB/PR
Especialista em Direito Civil, Processual e Empresarial.
Cessões de precatórios e o Provimento CNJ 207/2025: o fim das transações sem controle judicial
A recente publicação do Provimento nº 207/2025 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) marcou um novo capítulo na regulamentação da gestão e do pagamento de precatórios no Brasil.
Editado em 4 de novembro de 2025, o ato normativo vem para harmonizar a atuação dos tribunais após as alterações promovidas pela Emenda Constitucional nº 136/2025, reforçando a importância da transparência, controle e segurança jurídica nos atos envolvendo créditos judiciais.
Entre as questões mais sensíveis nesse contexto está a validade e eficácia das cessões de precatórios, tema que, embora amplamente praticado no mercado, ainda carece de rigor formal e de controle jurisdicional efetivo.
Este artigo examina, à luz do novo Provimento e da jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça (STJ), os vícios que tornam certas cessões ineficazes, e o papel do juízo da execução na preservação da legalidade — especialmente em casos que envolvem espólios e sucessões.
O problema das cessões informais e tardias de precatórios
O mercado secundário de precatórios cresceu exponencialmente na última década. Contudo, muitas cessões foram realizadas de forma privada, sem registro, comunicação ao Tribunal ou mesmo sem a anuência conjugal quando necessária.
Essas práticas, além de colocarem em risco a segurança do cessionário, geram conflitos sucessórios, questionamentos sobre a titularidade e incerteza jurídica quanto à legitimidade para levantamento dos valores.
O Código Civil, em seus artigos 104, 166, 167 e 221, é categórico ao exigir:
- objeto determinado,
- causa lícita,
- forma prescrita ou não defesa em lei, e
- registro no cartório de títulos e documentos (Lei 6.015/73, art. 129, X) para eficácia perante terceiros.
Cessões que não observam esses requisitos são nulas ou ineficazes, conforme entendimento pacífico do STJ (REsp 1.236.176/RS, 4ª Turma, DJe 16/05/2014).
O papel do juízo da execução e a Resolução CNJ 303/2019
Antes mesmo do novo Provimento, a Resolução CNJ 303/2019 já atribuía aos tribunais a responsabilidade pelo controle formal e material das cessões.
O art. 21 da Resolução determina que, havendo dúvida quanto à titularidade do crédito, o caso seja remetido ao juízo da execução para análise judicial — exatamente o que diversos tribunais vêm fazendo, como o TJPR por meio do Decreto Judiciário 86/2024.
Essa competência jurisdicional é indelegável.
Mesmo quando o departamento de precatórios (DGP) realiza a gestão administrativa, a decisão final sobre a validade da cessão é exclusiva do juiz natural do processo.
O que muda com o Provimento 207/2025 do CNJ
O novo Provimento não apenas reafirma, mas amplia o controle judicial.
Entre os pontos mais relevantes, destacam-se:
a) Supervisão integral e aplicabilidade imediata
O art. 1º determina que os tribunais “observem integralmente seus dispositivos até ulterior regulamentação”, o que significa vinculação imediata e obrigatória.
b) Natureza negocial e formalidade reforçada
O art. 8º define que “os acordos diretos têm natureza de negócio jurídico, somente podendo ser celebrados mediante livre manifestação das partes sobre todos os seus termos”.
Embora o texto trate dos acordos diretos, sua ratio juris se aplica igualmente às cessões de crédito: sem vontade livre, válida e formalmente comprovada, o negócio não subsiste.
c) Depósitos sob controle judicial
O art. 9º determina que os valores de precatórios sejam depositados em contas especiais sob controle dos tribunais, o que reforça o caráter público e fiscalizatório das transferências de titularidade.
Esses dispositivos tornam impossível sustentar a eficácia de uma cessão não comunicada tempestivamente ou formalmente irregular, pois o controle judicial agora é pré-requisito para a própria movimentação financeira.
Inaplicabilidade da convalidação retroativa
Um equívoco comum é a interpretação de que a Emenda 62/2009 e a jurisprudência do REsp 1.091.443/SP (Corte Especial, rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura) teriam “convalidado” cessões antigas.
Na verdade, esse precedente apenas afastou a necessidade de homologação judicial expressa quando o negócio já era válido e regularmente comunicado.
Negócios nulos de origem — por falta de outorga conjugal, objeto indeterminado ou ausência de comunicação — jamais se convalidam.
O art. 169 do Código Civil é inequívoco:
“O negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo.”
O Provimento 207/2025 não cria nenhuma exceção a essa regra — ao contrário, reafirma a exigência de validade e controle judicial, tornando ainda mais difícil a defesa de cessões informais e antigas.
A relevância para o direito sucessório e a proteção do espólio
Nos casos em que o titular do precatório falece, o crédito integra o monte partível, submetendo-se às regras da sucessão (CC, arts. 1.791 e 1.792).
Cessões feitas sem ciência da família, sem outorga conjugal ou sem registro configuram lesão à legítima e, em muitos casos, fraude à meação.
O controle judicial, portanto, não é mera formalidade: é instrumento de proteção patrimonial dos herdeiros e do próprio espólio, evitando que terceiros se apropriem indevidamente de valores que pertencem à sucessão.
Segurança jurídica e papel do advogado
O novo Provimento também lança luz sobre a responsabilidade ética e técnica dos advogados que atuam em cessões de precatórios.
Com o aumento da supervisão judicial, não há mais espaço para negócios celebrados de forma improvisada ou sem documentação adequada.
Advogados diligentes devem:
- exigir provas de titularidade e regularidade formal;
- comunicar imediatamente ao Tribunal a cessão;
- e evitar atuar em operações que possam ser interpretadas como simuladas ou fraudulentas.
A advocacia responsável é peça-chave para a credibilidade do sistema de precatórios.
Finalmente
O Provimento 207/2025 do CNJ reforça uma diretriz inequívoca:
a titularidade e o pagamento de precatórios estão sujeitos ao controle judicial formal e material, e nenhuma cessão irregular ou não comunicada poderá produzir efeitos perante o Judiciário.
Mais do que uma simples atualização normativa, o Provimento é uma resposta institucional à crescente complexidade do mercado de precatórios e aos conflitos derivados de cessões informais, trazendo segurança jurídica e proteção aos credores legítimos — em especial, aos espólios e herdeiros que buscam resguardar o patrimônio familiar.


