Por Paulo Ivo Rodrigues Neto
Desproporcionalidade não protege ninguém: ela pune além do necessário, gera exclusão social, amplia custos estatais e fragiliza a legitimidade do próprio sistema de justiça.
Este artigo surgiu de conversas frequentes com minha esposa, que sempre me lembrava: “estar do outro lado ninguém vê neh”. Essa frase, aparentemente simples, abriu um espaço de reflexão sobre as sutis engrenagens da desigualdade de gênero e sobre como a violência pode emergir, mesmo em contextos nos quais não se espera que ela aconteça.
Aqui, proponho um olhar pelo lado do agressor eventual, aquele que não é contumaz, mas que, em determinadas circunstâncias, pode praticar atos de violência. Mais do que justificar comportamentos, a intenção é compreender os mecanismos sociais, culturais e subjetivos que permitem que homens — muitas vezes alheios a uma identidade de “agressor” — atravessem a linha da violência.
A expressão “por razões da condição do sexo feminino”, que inspira o título, não é apenas um termo jurídico: ela revela uma lógica histórica que naturaliza desigualdades e cria as condições para que a violência ocorra, inclusive de forma episódica. Ao articular experiência pessoal e análise crítica, este estudo busca ampliar o debate sobre responsabilidade, prevenção e transformação social, reconhecendo que enfrentar a violência de gênero exige também compreender aqueles que, mesmo não reincidentes, participam dessa dinâmica.
quando se olha do outro lado
A Lei Maria da Penha é um dos maiores avanços da legislação brasileira no combate à violência contra a mulher. Não há dúvida de que ela cumpre papel essencial na proteção de vítimas em contextos de opressão estrutural.
Contudo, apenas quando se está do outro lado do balcão, na defesa do acusado, é que se percebe como o sistema de justiça, muitas vezes, atua movido por uma lógica de inimigo. O homem acusado de violência doméstica é automaticamente rotulado como agressor contumaz, independentemente das circunstâncias. Pouco importa se se trata de um episódio isolado, marcado por fatores como álcool, reciprocidade de agressões ou ciúmes ocasionais.
É nesse contexto que surge a necessidade de uma crítica: a aplicação desmedida da Lei Maria da Penha a todo e qualquer conflito entre homens e mulheres, sem o filtro constitucional do devido processo legal e da análise concreta do caso.
As espécies de violência e o núcleo do conceito
A Lei Maria da Penha prevê cinco espécies de violência (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral), todas com base em uma lógica comum: a desigualdade de gênero.
O ponto central, reforçado também pelo Código Penal, é que a violência precisa ocorrer “por razões da condição do sexo feminino”.
Ou seja, deve existir vínculo direto entre a agressão e a condição de gênero, seja por dominação, posse, menosprezo ou discriminação.
O ciúme: estrutural x ocasional
O ciúme é um dos grandes desafios interpretativos.
- Ciúme estrutural: traduz controle, posse, subordinação da mulher. Ex.: marido agride esposa porque ela não pediu “permissão” para sair. ➡️ Aqui há violência de gênero.
- Ciúme ocasional: surge em episódios isolados, em contextos de briga recíproca, álcool ou desentendimentos pontuais. Ex.: casal discute em uma festa e ambos partem para agressões. ➡️ Aqui a motivação não decorre da condição feminina, mas da circunstância conflitiva.
A confusão entre esses dois cenários é o que tem levado a decisões que banalizam o conceito de violência de gênero.
O risco do justiçamento judicial
Na prática forense, percebe-se que muitos magistrados e tribunais preferem aplicar a Lei Maria da Penha de forma automática. A lógica é simples: “se há agressão e a vítima é mulher, aplica-se a lei especial”.
Esse automatismo gera um efeito de justiçamento:
- O acusado passa a ser tratado como inimigo do Estado, sem que se investigue se ele é um agressor contumaz ou apenas eventual.
- Elementos favoráveis ao réu — como ausência de histórico de violência, circunstâncias episódicas, reciprocidade de agressões — são simplesmente ignorados.
- A presunção de inocência e a individualização da pena cedem lugar ao punitivismo simbólico, que prefere “dar uma resposta” à sociedade do que analisar a verdade dos fatos.
“Pro societate“
(riscado propositalmente)
Expressão utilizada para justificar decisões judiciais ou interpretações que priorizam o “interesse da sociedade” em detrimento das garantias individuais do acusado.
Normalmente surge em debates sobre prisão preventiva, medidas cautelares, restrição de direitos e interpretação de normas penais.
Exemplo: manutenção da prisão preventiva sem fundamentos concretos, sob o argumento genérico de “garantia da ordem pública” ou “clamor social”.
A Constituição (art. 5º) assegura princípios como presunção de inocência, devido processo legal, contraditório e ampla defesa.
A prevalência do pro societate, se aplicada sem limites, cria um risco de Estado policial, em que o indivíduo vira mero objeto da punição, sem proteção mínima.
Doutrina crítica: o processo penal não deve ser instrumento de vingança social, mas de garantia dos direitos fundamentais mesmo diante do crime.
Muitas decisões acabam aplicando o viés pro societate para justificar prisão preventiva automática ou medidas desproporcionais.
O discurso de proteção da vítima (legítimo em sua essência) acaba sendo estendido a ponto de suprimir direitos básicos do acusado, que muitas vezes não é reincidente, não apresenta risco concreto, e ainda assim sofre restrição antecipada da liberdade.
Isso reforça o “justiçamento social”: o acusado é punido previamente, enquanto a sociedade enxerga a prisão provisória como resposta simbólica, mesmo que no mérito a condenação seja a pena máxima e o cumprimento não o imponha um dia sequer em cárcere (o que chamamos de regime aberto).
Ou seja, o pro societate não pode ser um salvo-conduto para atropelar garantias constitucionais. O Estado Democrático de Direito exige equilíbrio: proteger a vítima sem transformar o acusado em um inimigo absoluto.
A distinção necessária: eventual x contumaz
- O agressor contumaz mantém padrão reiterado de opressão, manipulação e violência contra a mulher. Para ele, a Lei Maria da Penha se aplica de forma plena e necessária.
- O agressor eventual, envolvido em episódio isolado, não pode ser equiparado ao contumaz. Colocá-los no mesmo patamar é ignorar princípios básicos do Direito Penal, além de fragilizar a credibilidade da própria lei.
Os efeitos desproporcionais do erro ocasional
Um único erro, muitas vezes cometido sob efeito de bebidas alcoólicas e motivado por um ciúme episódico, pode gerar consequências irreversíveis ao agressor eventual.
Além da esfera penal, onde ele é condenado como se fosse um agressor sistemático, há efeitos colaterais que ultrapassam a pena formal:
- Perda do emprego: empresas não hesitam em desligar empregados envolvidos em casos de violência doméstica, sem sequer analisar o contexto.
- Prejuízo acadêmico: muitos estudantes têm sua formação interrompida ou atrasada por processos que os afastam da vida regular.
- Estigma social: a marca de agressor doméstico permanece mesmo em hipóteses de absolvição futura.
E não para por aí:
- Danos morais à vítima, que se somam à condenação.
- Restituição ao SUS, pelos custos de atendimento médico.
- Ressarcimento por deslocamento de viaturas policiais, o que soa como um verdadeiro excesso punitivo, pois serviços públicos essenciais não podem ser tratados como “despesa privada” do réu.
A isso se soma a prisão preventiva indiscriminada, utilizada como antecipação de pena, numa espécie de condenação prévia. O paradoxo é que, em grande parte dos casos, a sentença definitiva sequer imporia regime fechado ou prisão efetiva. Ou seja: o acusado cumpre a pena antes mesmo de ser condenado.
Esse conjunto de efeitos demonstra que a aplicação desmedida da Lei Maria da Penha em casos de agressão ocasional gera um problema social ainda maior do que o fato em si. A resposta estatal, em vez de ser justa e proporcional, torna-se um mecanismo de destruição da vida do agressor eventual, sem que isso represente, de fato, maior proteção à vítima.
proteger sem banalizar
A luta contra a violência de gênero é legítima e indispensável. Mas transformar qualquer conflito em violência de gênero é esvaziar o conceito e fragilizar a lei.
O olhar crítico de quem atua na defesa demonstra que a Justiça, ao adotar a lógica do inimigo, sacrifica garantias fundamentais e comete injustiças graves contra agressores eventuais — homens que, em um episódio isolado, são tratados como se fossem reincidentes violentos.

É preciso resgatar o verdadeiro sentido da expressão “por razões da condição do sexo feminino”. Só assim preservaremos tanto a eficácia da Lei Maria da Penha quanto a legitimidade do sistema de justiça, evitando que o punitivismo simbólico substitua o Direito.


