Por Paulo Ivo Rodrigues Neto
Nos últimos anos, temos assistido a uma preocupante inversão de prioridades no sistema jurídico brasileiro. Crimes de alta gravidade — como corrupção, tráfico de influência, agressões, peculato e fraudes diversas — são, com frequência, tratados com excessiva complacência pelo sistema de justiça. Benefícios processuais, recursos intermináveis e interpretações favoráveis garantem aos réus um percurso juridicamente confortável.
Em contrapartida, manifestações artísticas, opiniões críticas e piadas — ainda que ácidas ou provocativas — vêm sendo objeto de investigações, processos e tentativas de censura. O que deveria ser protegido como liberdade de expressão, princípio basilar do Estado Democrático de Direito, passou a ser tratado como delito.
Do ponto de vista jurídico, isso revela uma distorção grave: o direito penal, que deve ser a ultima ratio (última instância do Estado contra o cidadão), está sendo instrumentalizado para silenciar vozes incômodas, enquanto falha em coibir condutas que verdadeiramente ameaçam a ordem pública e o patrimônio coletivo.
Essa criminalização seletiva não é apenas contraditória: ela é perigosa. Quando o Estado passa a reprimir o discurso — inclusive o humorístico — com mais rigor do que os atos que efetivamente lesionam bens jurídicos relevantes, assistimos a uma erosão das garantias fundamentais.
Como advogado, vejo com extrema preocupação esse cenário. A liberdade de expressão, com todos os seus limites e responsabilidades, não pode ser sacrificada em nome de sensibilidades subjetivas ou interesses políticos momentâneos. Da mesma forma, a banalização das condutas criminosas reais corrói a confiança da sociedade no próprio sistema de justiça.
Não se trata de defender o abuso do direito de se expressar, mas sim de alertar que hoje, no Brasil, fazer piada pode custar mais caro do que cometer um crime — e isso, definitivamente, não é engraçado.
O cenário jurídico se torna ainda mais preocupante quando olhamos para o comportamento social que o acompanha. Um episódio que considero simbólico — e, francamente, alarmante — foi a manifestação pública de alegria, com gritos, fogos de artifício e comoção coletiva, pela soltura de um artista que, notoriamente, promove discursos ligados à criminalidade, exalta facções e faz, ainda que disfarçadamente, apologia ao crime organizado em suas músicas e atitudes públicas.
É preciso dizer com todas as letras: essa é uma crítica pessoal deste autor, mas fundada na percepção jurídica e social de que tais manifestações não são apenas culturalmente equivocadas — elas são sintomas de um colapso moral e institucional.
Quando um acusado de envolvimento com práticas ilícitas é recebido como herói, e sua libertação é celebrada nas ruas como uma vitória da comunidade, algo está profundamente distorcido. A sociedade que deveria repudiar o crime, passou a glamourizá-lo. Enquanto isso, artistas, jornalistas e cidadãos que fazem piadas, críticas políticas ou manifestam opiniões impopulares enfrentam sanções legais, censura e perseguição.
Estamos diante de uma perigosa inversão de valores: o crime virou espetáculo, e a liberdade de expressão virou ameaça.
Essa celebração da soltura de figuras associadas ao crime — por uma parte da população que vê neles ídolos — escancara não apenas a falência do sistema penal, mas o adoecimento mental, ético e emocional de uma geração que perdeu a referência do que é certo e do que é crime.
Como juristas e cidadãos, não podemos nos calar diante desse cenário. Precisamos defender o Estado de Direito — com justiça firme contra o crime real e com liberdade plena para a crítica, a arte e o pensamento.